"Parece uma maldição que me persegue. Perdi meu roteiro novamente. Digo novamente pois também perdi meu roteiro três semanas antes de acabar “Cidade de Deus” e o mesmo aconteceu com o roteiro do “Jardineiro Fiel”. Claro que eu poderia imprimir uma nova cópia, mas nem é o caso, de tanto lê-lo já decorei completamente a história. O que me faz falta não são os diálogos ou as descrições das cenas, mas sim as anotações e idéias que fui rabiscando nos cantos ou no verso das páginas desde dezembro do ano passado. As idéias que me pareceram boas eu até lembro, mas certamente vou esquecer detalhes que nunca chegarão a ser filmados. Merda. O pior é que eu tenho certeza de onde deixei. Estava na prateleira de livros no cenário da casa do Médico. Alguém tirou do cenário, provavelmente para não aparecer em quadro, enfiou numa caixa qualquer e eu nunca mais vou vê-lo, já sei. Agora tenho que terminar de rodar assim mesmo, às cegas. Já vi este filme.O destino de um roteiro é sempre muito triste, esse que perdi levou 5 ou 6 anos para ser concluído e no dia seguinte em que acabarmos a filmagem, passaria a ser papel inútil. Pouquíssima gente vai se dar ao trabalho de ler aquelas páginas novamente. As cópias que tiverem sorte serão recicladas, a maioria vai para o lixo mesmo. É triste porque pouca gente se dá conta da complexidade e do número de questões que envolve a criação de um roteiro. Quer um exemplo?Quem conta a história? Esta é em geral uma das primeiras decisões que um escritor tem que tomar. No cinema é a mesma coisa, a escolha de quem será o narrador transforma completamente um filme. Nos outros (poucos) filmes que fiz esta questão é facilmente respondida mas nessa Cegueira a coisa é mais complexa. Vou teorizar um pouco. Para quem não gosta de blá, blá, blá, até o próximo post.No começo de “Blindness”, quem conta a história é o diretor (eu mesmo) com a ajuda da equipe, claro. Conto a história colocando a câmera, os microfones e com eles, o espectador, sempre no meio da ação. Por eu ser um narrador privilegiado, que já leu o roteiro até o final, você, o espectador, vai perceber que há uma epidemia se alastrando antes mesmo que os personagens se dêem conta disso, coitados. Como também sou um contador que está fora da trama, posso pular de um personagem para outro e acelerar os acontecimentos para chegar mais rápido ao segundo ato quando todo mundo vai para uma quarentena num asilo. (Sinto muito para quem não leu o livro e não sabe do que estou falando. Aliás, quem não leu deveria ler. É livro que se devora num final de semana). Voltando: Quando a ação se desloca da cidade para o asilo o contador da história deixa de ser o diretor e passa a ser a Mulher do Médico. É através do seu olhar que vemos o que acontece. Colada nela, a câmera fica trancada no asilo de quarentena também, vê ou sabe apenas o que a Mulher do Médico vê e sabe. Esse é o momento em que a trama desacelera um pouco para que o espectador embarque na viagem desta personagem vivendo junto sua experiência. Por sorte tenho a Julianne Moore a bordo e definitivamente ela sabe como fazer os espectadores compartilharem as experiências e emoções desta Mulher do Médico.
A história segue, a situação evolui devagar. Passado um pouco da metade do filme entra em cena um novo personagem, o Velho da Venda Preta (Danny Glover), para mim um alter-ego do Saramago, com o já disse aqui. De repente, sem mais, ele começa a narrar o que se passa no asilo. Diferente do olhar da Mulher do Médico, que nos mostra os fatos, a voz deste narrador tardio, o Velho da Venda Preta, nos conta o que se passa na cabeça dos personagens, conta uma história mais profunda narrando as implicações e conseqüências do que acontece, criando uma nova camada de leitura para o filme. Então, no terceiro ato, quando todos os personagens voltam para a cidade, os dois outros narradores, o diretor e a Mulher do Médico, se juntam ao Velho da Venda Preta e a história passa a ser narrada alternadamente pelo olhar dela, pela voz dele e pela câmera, que coloco onde bem entendo (ou onde o César sugere ou permite).Esta mudança de narrador afeta a linguagem e estabelece o ritmo do filme. O primeiro ato é mais clássico, a história avança agilmente da maneira como acontece na maioria dos filmes. No segundo ato, o da observação da Mulher do Médico, o filme viaja mais, é menos objetivo e divaga como uma mulher. (Sim. As mulheres são melhores em divagações do que os homens) Finalmente, quando entra a narração do Velho da Venda Preta o filme volta a ter uma trama mais linear, mas somada a uma leitura do que se passa. Essas três maneiras de contar a história dão a cara ao filme e isso já estava indicado no roteiro. Ou seja, qualquer decisão do roteirista pode transformar o filme radicalmente não só em seu conteúdo, mas em seu formato. Há uma pequena guerra nos EUA no momento, entre os roteiristas e os estúdios. Eles querem ser reconhecidos como autores dos filmes no mesmo patamar que os diretores com cachês e prestígio igual. Acho mais do que justa esta reivindicação. Só porque o que escrevem vai para o lixo no final da filmagem não quer dizer que seu trabalho não tenha a mesma, ou às vezes maior, importância do que o trabalho do diretor.Muitas vezes quando penso num roteiro, fico quebrando a cabeça para tentar achar uma trama que nunca pare de se desenrolar, (essa é a primeira lição que se aprende em cursos de roteiro, se uma cena não transforma a história ela está sobrando e deve ser cortada). Com esse filme aprendi que às vezes não é preciso fazer a trama andar, o simples deslocamento do ponto de vista, a troca de narrador, gera um enorme movimento mesmo que a ação pare. Isso era apenas uma idéia teórica que agora confirmei na prática. E parece funcionar. Aliás, não é nenhuma novidade a troca de narrador num filme. Muitos filmes são apoiados nesta idéia, uma mesma história vista por diferentes ópticas. Minha bíblia do roteiro, que é “Goodfellas” (os “Bons Companheiros”), escrito pelo mesmo autor do livro, Nicholas Pileggi, faz isso muito bem. Quem conta a história da Máfia no filme é o Henry Hill, (personagem do Ray Liotta) mas de uma hora para outra, sem aviso, sua mulher, Karen (Lorraine Bracco) passa a narrar. O Bráulio Mantovani e eu até tentamos fazer o mesmo em “Cidade de Deus”, mas como aquela história já era muito confusa resolvemos deixar apenas um narrador, o Buscapé. Só não copiamos “Goodfellas” por que não deu certo.Os bons filmes estão aí para serem copiados, ou “homenageados”. Não são poucas as “homenagens” que presto.(E se alguém encontrar um fichário de capa de plástico azul com um roteiro todo rabiscado dentro, já sabe. É meu. Façam a gentileza de devolver ou me informar através de um comentário neste blog, que tenho lido regularmente)."